Um plano, um ignorante e dois cães salivantes

POSTADO POR: admin sex, 02 de agosto de 2013

Invadindo a propriedade privada
Ou Quando o Bola de Sebo
de Quintino tentou assaltar o bicheiro Ourimar Carmona

Eu estava enchendo a
cara, na varanda imunda do apartamento do Moura, e o assunto como sempre era a
nossa crônica falta de grana.
– Você ainda ganha algum
com os livros, eu não consigo tirar merda nenhuma. – Ele disse.
– Bobagem. Eu ganho quase
nada.
– Mas ganha.
– É… Pouco.
– Eu devia aceitar o
convite do Bola de sebo… Pode ser uma boa.
– O cara da mecânica?
– Ele é o dono da mecânica!
– Saquei. E qual foi o
convite?
Moura não respondeu,
matou a cerveja num gole só. Depois levantou decidido.
– Vem comigo, nós vamos
meter a mão numa grana!
– Não me meto com roubo,
se for esse o papo do Bola de sebo. Aliás, eu me recuso a chamar alguém de Bola
de Sebo… Qual o nome desse cara?
– Epaminondas, eu acho.
– Éééé… – Golada boa na cerveja.
– Sabe aquele bicheiro
que foi preso junto com o filho na semana passada?
– Ourimar Carmona.
– Esse aí! O Bola me
disse que tem uma caixa com ouro puro, joias, escondida dentro da casa dele.
Nesse caso não é roubo.
– Não fode, Moura, o
Minondas tá de sacanagem contigo! A Federal já revirou a casa do bicheiro de
ponta à cabeça. Levou tudo.
– Isso é o que estão
dizendo. Mas a casa é cheia de compartimentos secretos. O Bola consertava os
carros do Carmona, sabe tudo sobre o lugar.
– A casa está vazia e
lacrada, não está?
– Sim.
– Legal. E quem compraria
a mercadoria sem rolar sujeira?
– O Chininha do Casarão
de Madureira.
-Ling Ping?! Aquilo é um
ferrado! Vendeu-me um relógio de mergulhador que não aguenta nem banhos de
chuveiro!!
– Ele é só a ponte com os
mafiosos de Xangai, a grana vai sair de lá.
– Que doidera, Moura. Se
bem que a coisa sendo maluca demais pode até dar certo.
Em menos de duas horas
estávamos sentados no sofá ordinário de couro surrado do Bola de sebo, um negro
alto, redondo e careca que vive enxugando suor do pescoço e da testa mesmo no
inverno (e de frente para dois ventiladores giratórios).
– O lance é o seguinte – disse o Bola de sebo com a toalhinha pousada no enorme
pescoço – nós vamos invadir o
bagulho na madrugada, vigiando pra ver se passa alguém, direitinho, na moita.
– Nós vamos pular o muro?
 Questionei, avaliando que seria impossível para o
Bola executar tal manobra sem quebrar a bacia.
– Não, eu tenho as chaves!
Moura e eu concordamos
com o básico inicial de qualquer plano de sucesso, e o Bola, que antes não
parecia ser lá muito inteligente, tinha as chaves da casa e esperava pelo
momento certo para usá-las desde 2008.  Talvez fosse inteligente para o
que não presta, como boa parte das pessoas que a vida pôs em meu caminho.
De repente, a esposa do
Bola, uma moreninha magricela com cabelos bagunçados e cara de morta viva,
adentrou a sala trazendo uma bandeja com café e bolachas de maisena. Não pude
deixar de reparar que sua camisa furada pedia votos para um candidato a
governador derrotado na campanha de 1998, enquanto seu marido usava um blusão
novo e sapatos lustrosos de bico quadrado.
Tomamos o café ouvindo
todas as instruções do Bola de Sebo. Ele entraria na casa com o Moura e eu
vigiaria a rua, do jardim, bem escondido.
– Quer dizer, se a coisa
toda sair errado eu sou o primeiro a me foder? – 
Questionei.
– O que você sugere,
então?
– Vigiar lá da rua, e não
dentro do jardim. Qualquer coisa eu te dou um toque e o celular vai vibrar;
deixa no silencioso.
– É. Pode ajeitar de boa.
 Disse ele com ares de mafioso ponderador.
Às três da madrugada, em
ponto, nós estacionamos o Gol branco na esquina da Castaneda com outra rua
residencial menor, e fomos caminhando para a casa do bicheiro Ourimar. O Bola
se enxugava mais do que nunca e eu estava usando camisa e casaco.
– Chegamos. Agora eu pego
as minhas chaves e entro com você –
 Disse ele apontando para o Moura.
– Deixa comigo, aqui fora
eu fico de olho. –
 Reforcei.
Eles entraram tão rápido
quanto dois ratos em fuga. A rua estava deserta, nem viva alma, nada. Acendi um
cigarro e acabei pensando, involuntariamente naquela mulher magricela pedindo
votos para o governador derrotado de 98. O sorriso do canalha estampava a veste
infeliz daquela mulher que me pareceu igualmente infeliz. Dane-se. Ainda pego o
imbecil do Ling Ping, pelo relógio afogado. Quando formos negociar as joias eu
falarei sobre o relógio; ele pode estar achando que eu esqueci, mas não consigo
esquecer, é meu único relógio e não funciona. Eu preciso ver as horas pela
televisão. Às vezes ligo a porra da televisão para ver as horas e me lembro de
que é por causa daquele trapaceiro miserável que eu liguei a droga da TV
novamente.
– Sem tloca, sem tloca!
– Troca essa merda ou lhe
quebro a cara, Ping!!
– Sem tloca, sem quebla
quebla!!!
Outro cigarro. Na rua
seguia a mesma coisa, só morcegos circulando e aproveitando o banquete de uma
amendoeira carregada de frutos. Passaram  mais de 15 minutos. Comecei a
pensar no que dizer caso fosse abordado.
‘- Só estou pensando no
que fazer agora, a minha mulher me expulsou de casa. Eu moro, ou melhor, morava
ali na Rua Clementina. Estou aqui pensando.’
Eu mesmo me convenci de
que era um corno expulso de casa, é algo que combina comigo. Boa justificativa.
Eis que o alarme de
segurança da casa dispara. Alguém fez bobagem lá dentro. De repente, sai o
Moura, apressado, trazendo uma sacola.
– Por que o alarme
disparou??
– O Bola é um idiota!
Vamos sumir daqui!
– Cadê ele?
– Se fodeu, vamos embora!!
Corremos calados entrando
por pequenas ruas próximas. Agora já estávamos a certa distância segura.
– O que aconteceu lá
dentro??
– A tal saleta secreta
com a caixa…
– O que tem ela?
– Tinha alarme.
– Eu ouvi o alarme! E o
quê mais??
– Acho que o sistema de alarme abriu o canil…
Vieram dois Dobermans e foram direto no Bola. Estão comendo ele agora.
– Tá de sacanagem? O que
vamos dizer a mulher dele??
– A gente dá um jeito!
Levamos a parte do Bola
no negócio e entregamos para a mulher dele, depois contamos todo o ocorrido. A
mulher pegou as pedras de ouro sem dizer nada, apenas balançou a cabeça
positivamente. Iríamos cruzar o portão para a rua quando a magricela deu o
comando:
– Deixe a sacola toda aí
e pode vazar. Quem tentar gracinha vai morrer.
A pistola já estava
apontada e engatilhada. O governador ainda pedia votos.
– Que bosta… Entrega a
bolsa, Moura.
(O que nos consola é
saber que a pobre foi morta tentando fugir do Rio de Janeiro no dia seguinte.
Porém, infelizmente, a grana agora é da polícia.)