Um pássaro adiante

POSTADO POR: admin ter, 28 de abril de 2015

Os meus ossos doíam e o meu coração estava mais mole que de costume, eu podia sentir. Retirei os cobertores de cima do meu corpo e coloquei meus chinelos. Peguei o maço de cigarros e tomei o caminho da cozinha. Coei o café e o cheiro me deu uma sensação de conforto, “É, o tempo anda amolecendo o meu coração”, ponderei, “Sempre fui um homem rude; o que há comigo?”, raciocinei de novo.

Andei até a janela e senti o sol que ultrapassava o vidro a tocar minhas fuças, enquanto fumava e bebia uma grande xícara de café preto e bem forte. Instantaneamente, entre o segundo e o terceiro gole de café, como que por instinto, liguei a vitrola sem olhar qual bolachão dormiu dentro dela, e rapidamente notei que a sinfonia era de Vivaldi, ainda nas primeiras notas, “Ele foi um grande homem”, pensei. E de alguma maneira, senti a melancolia crescer dentro de meu âmago; pois, por incrível que pareça, ela é a melhor companheira que tive até hoje, além da solidão, claro.
Firmei meus olhos e vi um pássaro acuado entre a calçada de passeio e a rua de paralelepípedos, “O que há com ele? Um canário assim, tão bonito, no chão, isto é estranho”, concluí. Não demorou muito e notei que estava a destrancar a minha porta e a caminhar de encontro ao pássaro, “É inacreditável”, pensei, quanto a minha atitude.
“Não posso assustá-lo”, bolei em minha mente. “O que há comigo, porra?”, pensei, agora, ainda mais surpreso e próximo do canário. Em segundos eu o acariciava e o pássaro parecia ainda mais bonito. Então eu percebi que ele aninhou-se em minhas mãos como se estivesse satisfeito com o calor que meu corpo lhe proporcionava, “Logo eu, que nunca pude aquecer o coração de ninguém”, ajuizei.
Assim que entrei em casa, o levei pra cozinha, e com a ponta de meu dedo-indicador peguei um pingo de água da torneira e molhei sua cabeça. Deu pra ver que o avivou, “Acho que ele encheu a cara e precisa de uma bolsa de gelo”, cogitei, e ironizei a desgraça do pequeno pássaro do mesmo modo que faço com a minha e sigo em frente.
O levei até a sala e o coloquei sobre a minha poltrona de leitura, “Ele deve estar com fome, mas e se eu sair daqui e ele voar pela janela?”, me alonguei, “Bem, se isto acontecer, é sinal de que não precisa mais de meus cuidados”, finalizei, e me senti o mais tolo de todos os caras de coração muito mais do que mole que conheci em minha vida.
Peguei uma pitada de farinha de milho e com um pingo de água fiz uma espécie de paçoca; depois enchi um pequeno pote com água e voltei pra perto do canário. Depositei diante dele e permaneci a olhar pra ele com uma estranha devoção. Em instantes ele comeu e bebeu; e a tal cena fez com que meus olhos sentissem que havia um tanto de lágrima em cada um deles, “Eu não me comovia há pelo menos vinte anos”, lembrei.
Sentei diante da minha máquina de escrever e comecei a trabalhar; enquanto isto, o pássaro mais lindo que já vi cantarolava como quem acompanhava o grande Vivaldi, “É como se fossem feitos um pro outro”, pensei. Eu me sentia bem, com meu coração quente; e não demorou muito pra que eu notasse que o canário voava em círculos por toda a sala e ignorava as janelas escancaradas. “Santa ignorância a minha, achando que o salvador fosse eu”, concluí, antes de enxugar meus olhos e abrir uma garrafa de vinho.