Perturbação Interna – Meia dúzia de palavras

POSTADO POR: admin qua, 26 de setembro de 2012

O que fazer quando, do nada, você começa a receber e-mails com relatos sinistros de um desconhecido? Bom, eu resolvi publicar aqui no blog! 
Para isso eu criei essa sub-coluna intitulada ‘Perturbação Interna’ onde venho postando, para dividir com vocês, essas conturbadas palavras que insistem em chegar a minha caixa de entrada.
Bem antes de
entrar em contato com este site, eu já apreciava seu posicionamento com relação
ao ser humano e seus comportamentos, afinal, um site chamado “Dito pelo
Maldito”
não combinaria com videozinhos engraçados nem com mensagens de
autoajuda.
Quando
comecei  a enviar textos com meus
pensamentos para uma possível publicação neste site eu não esperava solução
alguma nos comentários, ou julgamento dos leitores; sempre foi apenas um
necessário desabafo.
Mas dessa vez, eu
gostaria de alguma opinião sobre o que aconteceu, se está correto o meu senso
de humanidade ou se preciso de assistência psicológica para complementar meu
tratamento mental.
Tenho um padrinho
com idade de avô, que teve participação importante em minha vida. Participou de minhas brincadeiras quando eu era criança,
de meus questionamentos quando eu era adolescente, e de minhas conquistas e
derrotas quando eu já era adulto.
Apesar de não
morar em sua casa, eu considerava ele e minha madrinha, que era tia da minha
mãe, como meus pais particulares, pois não precisava dividi-los com meus
irmãos.
Com o tempo, as
visitas foram se tornando mais distantes (ele não aderiu à internet), minha
madrinha morreu, ele se mudou para a casa de uma irmã viúva, e, dois anos
atrás, depois de perder várias vezes a chave da casa, e brigar várias vezes com
a irmã por não se lembrar de combinados para manter a limpeza da casa, meu
padrinho foi diagnosticado com Alzheimer.

Mesmo com
tratamento, o Mal de Alzheimer é degenerativo e incurável.
É como se todas as
memórias de uma pessoa estivessem impressas em um longo pergaminho, e, por
causa desta doença, a tinta deixa de grudar no pergaminho, e em pouco tempo,
esse pergaminho começa a queimar de trás para frente, com as cinzas de todas as
memórias de sua vida sendo espalhadas pelo vento.
No meio do ano
passado, ele chamava pela falecida esposa e discutia com a irmã quando ela
inventava alguma desculpa para justificar essa ausência.
No final do ano
passado, ele se trancou dentro da casa, deixando do lado de fora o enfermeiro
que tinha sido contratado para cuidar dele, e gritava por socorro, chamando o
nome de antigos vizinhos, dizendo que um assaltante estava tentando entrar na
casa.
No começo deste
ano, ele não me reconheceu, e me tocou da casa por me confundir com um
ex-namorado de sua esposa.
Eu não consegui
visita-lo depois disso.
Não foi por falta
de tempo, ou por medo de ser confundido novamente com um ex-rival.

Muitos dos
parentes ou amigos que o visitavam diminuíam essas gafes, e até gostavam de
ficar ouvindo e concordando com as conversas 
malucas dele, como da vez em que ele convenceu o presidente Figueiredo a
acabar com a ditadura e realizar as eleições diretas, ou da vez em que ele usou
uma capa e máscara iguais às do Zorro para fugir com a madrinha da casa dos
pais dela.
Minha mãe
comentava comigo essas conversas, eu soltava um risinho para não estragar esse
sentimento de consolo dela, mas não via graça nenhuma  nisso.
Aquilo não era meu
padrinho. Nem como ser humano eu considerava aquele ser.
Eu sinto que meu
padrinho já morreu; pior do que isso, eu sinto que o pouco que resta do meu
padrinho está preso dentro daquele zumbi, sofrendo a cada minuto por não
conseguir entender o mundo aterrorizante em que ele está condenado a viver.
Recentemente ele
sofreu uma queda, e para ter chances de voltar a andar, ele precisava ficar de
cama.
Sei lá porque, mas
eu fui visita-lo na semana passada.
Encontrei um
cadáver respirando entre resmungos em uma cama com grades laterais.
Aquele arremedo de
ser humano lembrava vagamente o meu padrinho: Mais do que magro, ele estava
seco, a pele puxada para dentro das cavidades oculares do crânio, parecendo o
olhar de uma caveira, os olhos entreabertos no fundo dessas covas passavam uma
impressão de agonia, vagando a esmo, sem forças para erguer as pálpebras.
Minha tia, a irmã
dele, conversava com minha mulher, explicando que ele precisava de fortes
calmantes para ficar na cama, senão, ele tentaria se levantar e acabaria
caindo.

As duas saíram do
quarto para ver o que as crianças estavam fazendo no quintal, me deixando
sozinho no quarto.
Sozinho, pois eu
não considerava aquela carcaça sobre a cama como uma companhia.
É uma doença
irreversível, não existe cura, só existe sofrimento; por qual motivo uma pessoa
que nunca cometeu um ato de crueldade em sua vida é condenada a essa punição?
Eu pensei em
acabar com aquilo.
Nunca tive
experiência alguma nisso, mas tudo o que eu pensava era que aquela era uma
chance única de fazer a única coisa certa naquele momento.
Fui para a sala,
peguei uma almofada lisa que estava no sofá.
Deixei a porta
aberta, assim eu podia ouvir minha tia e minha mulher conversando na cozinha,
poderia parar se ouvisse alguém se aproximando.
Com a almofada na
mão, diante da cama, uma mistura de sentimentos abalou a minha convicção.
Apesar de saber
que aquilo seria o certo, o medo de ser descoberto, o receio de deixar pior
algo que já era ruim, a culpa de uma cura para essa doença surgir no dia
seguinte.
Lembrei do meu
padrinho, imaginei o sofrimento que ele estava passando dentro daquela prisão
de carne e ossos, tornei meus movimentos uma rotina mecânica, realizando-os sem
pensar no que eu estava fazendo, como se eu estivesse trocando o pneu de um
carro ou carregando um saco de lixo…

Escrevi, mas
apaguei a descrição de como foi o ato em si. Não acho relevante para que o
leitor deste relato faça seu julgamento.
Basta dizer que eu
fiz aquilo com apenas com a decisão e a necessidade de realizar algo que eu
julgo correto, sem sentimento de nojo, compaixão, felicidade ou crueldade, nem
mesmo quando eu tive que pensar para realizar uma ação extra, pois apenas a
almofada não estava sendo o suficiente.
Peço um julgamento
dos leitores, não por sentir culpa ou dúvida sobre o que fiz, mas para saber se
o meu conceito de humanidade é compatível com o das pessoas ao meu redor, para
saber se eu posso conversar sobre esse e outros assuntos difíceis sem ser
considerado um psicopata ou um anticristo.

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