O lado que ninguém viu da Violência Infantil

POSTADO POR: admin qua, 26 de outubro de 2011

É notável que a quantidade de casos de violência infantil vem aumentando nos últimos anos. Basta ligar a TV num noticiário sanguinolento desses que passam bem na hora do almoço que você verá algum pai/padastro drogado/bebado que bateu em alguma criancinha de poucos anos de idade ou até mesmo meses. É triste, mas isso está acontecendo. Não sei de quem é a culpa, como combater ou se isso sempre aconteceu e agora fica mais à mostra devido à quantidade de câmeras ou gosto questionável dos tais noticiários. Não sei. Mas sei que essa não é o único tipo de violência infantil que existe e sei que eu fui vítima de uma delas.

Antes que vocês comessem a me chamar de coitadinho e aos meus pais de monstro, devo avisar que você -leitor(a)- provavelmente foi vítima do mesmo tipo de violência e nem sequer parou pra pensar nisso.

Lembra quando sua mãe cantava
aquela canção ‘Nana Nenem’? Ela não cantava, meu caro. Ela ameaçava! Vocês
podem até ter levado tudo aquilo na esportiva, mas assim que ela cantarolava
Nana nenem, que a Cuca vem pegar…” eu fechava meus olhos e fingia
que estava dormindo só pra não ter que encarar essa tal de Cuca. A hora de
dormir nunca foi fácil pra mim.
Outra música que sempre soube que
era uma ameaça era aquela do boi da cara preta. Maldita música. Cantavam
“Boi, boi, boi. Boi da cara preta, pega esta criança que tem medo de
careta”
e faziam uma careta da porra. Claro que eu sentia medo como
qualquer criança e apesar de estar quase me cagando , me segurava e fazia cara
de quem tá nem aí com aquela ameaça. Até hoje tenho medo dos bovinos. Não me
pergunte medo de quê, sei que tenho medo. Deve ser por isso que como carne com
um sorriso no rosto, menos um bovino no mundo. 
Outra coisa que me deixava com a
pulga atras da orelha eram aqueles contos de fadas. Nunca sabia quando eram
fábulas ou baseados em fatos reais. Sempre me colocava no lugar das personagens
e acabava me empolgando ao ponto de me sentir na própria fábula.
A estória de Joãozinho e Maria é
um bom exemplo. Fiquei aterrorizado quando ouvi aquilo. Tudo finalmente fazia
sentido. Consegui instantaneamente entender o que acontecia comigo quando ia à
casa da minha avó, tias e amigas da minha mãe. Elas queriam me engordar o mais
rápido possível. Só isso fazia sentido. Minha mãe era cúmplice, acho até que ela
era a cabeça, só não tinha coragem de fazer tudo sozinha, deve ser algo muito
difícil empanturrar o próprio filho de comida até o ponto de abate. É aí que
entravam as outras, um rodízio elaborado de anfitriãs, cada uma com refeições
gigantescas e sobremesas suficientes pra dezenas de crianças. Eu sabia do plano
delas, mas não conseguia resistir. 
Mesmo depois de decifrar toda aquela farsa, eu
não conseguia rejeitar aquela comida. Entrei em crise, não sabia em quem
confiar. Minha vida se tornou um inferno. Não tinha mais ninguém. Não conseguia
viver daquele jeito, tinha que por um fim naquilo tudo. Então, com muita calma,
elaborei um plano que, ou me faria fugir de casa ou, devolveria minha paz. Eu
tinha que comer um pedaço da parede da casa de alguma delas, se tivesse gosto
parecido com o de biscoito, tava fudido.
Minha avó era a próxima no
rodízio. Esperei pela hora do almoço como um condenado espera a hora da cadeira
elétrica. Chegara a hora da verdade. Enquanto me preparava pra ir pra casa dela
me despedi dos meus brinquedos, do meu quarto, meu vídeo game. Poderia ser a
ultima vez que os via. 
Banco de trás, minha mãe no volante. Chegamos à casa da
véia. Ela na varanda, sorridente, seu plano estava perto do fim, mais dois
quilos e eu virava oficialmente obeso. Ritual de sempre, comida até onde a
vista alcança, tudo brilhando de manteiga. A melhor refeição da minha vida.
Triste, mas gostosa. Uma mordida, uma lagrima. Minha mãe me perguntou várias
vezes se eu estava bem. Quase cheguei a acreditar que ela se importava comigo,
mas me lembrei que ela se interessava na qualidade da minha carne. “Boi
que morre só, não se come” é o que dizem. 
Terminei o almoço. Manjar de
ameixa na sobremesa. Chorei mais um pouco, as duas me olhavam assustadas.
Peguei a colher e comi o manjar o mais lentamente que pude, devo ter levado
quase meia hora pra terminar o pedaço. Terminei e sai da mesa de cabeça baixa. ‘Ele está muito estranho, melhor deixar ele só’ disse minha avó para minha mãe. 
Fui pro quarto de visitas, peguei uma chave de fenda e meti na parede. Atrás da
tinta azul havia um material granuloso, meio amarelado. Farelo de milho? Só
havia um jeito de descobrir. Raspei um pouco com a chave de fenda e meti
língua. Era barro. Que gosto horrível! Comecei a tossir, tossir fuderosamente,
minha mãe veio em ver o que era e me viu segurando uma chave de fenda, a parede
raspada e minha língua amarela. Ela me deu água, me deu uma pisa e me levou pra
um psicólogo.
Também tenho medo de psicólogos,
mas isso é outra estória, conto depois.
Twitter @negodobroz