O Dia da Execução

POSTADO POR: admin ter, 11 de março de 2014

“Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do senhor por longos dias”, Salmo 23 – 6.

Eu não sei exatamente em que acredito, mas o fato é que os humanos precisam crer em algo, só isso. Tento pensar que ler algumas linhas da bíblia antes de encontrar com o prisioneiro me faz bem. Não sei se faz. Mesmo assim, caminhava firme e procurava confiar que a bíblia me confortava como precisava. O corredor estava frio. Havia pouca luminosidade nesse dia. Podia ver as sombras dos condenados se movendo em suas celas. Era como se as suas almas deixassem os seus corpos e pudessem vagar com toda a liberdade para além das grades.
Cheguei até a cela. Parei. Olhei para o sujeito. Eu estava diante do matador mais cruel de que já ouvi falar. Ele não se moveu quando me viu.  Havia quatro guardas e o capelão comigo. “Vou entrar para conversarmos”, avisei. Sentado na cama, não abriu a boca. O quarteto sacou suas armas, pois o procedimento é esse. Enquanto isso, o capelão permanecia imóvel, ao tempo em que segurava a bíblia junto ao seu peito, certo de que logo seria chamado. Sentei ao seu lado. Olhei firme em seus olhos. Ele correspondeu a minha encarada. Havia consistência e frieza entre nós. “Sabe que precisa me acompanhar”, pontuei. “Sim, eu sei!”, respondeu. “O que gostaria de saber?”, perguntei. “Eu não tenho perguntas”, replicou. Em todo caso, eu tinha de falar uma série de coisas. O prisioneiro precisa entender o procedimento. A lei prevê informá-lo de tudo. É um direito assistido aos condenados à pena de morte.
“Tem direito a fazer um último pedido antes que eu venha buscá-lo, às dezoito horas”, expliquei. “Quero uma faca e uma pessoa para que eu a degole”, disse o assassino. “Eu não posso fazer isso. Além do mais, duzentas e oitenta degolas é o suficiente”, ponderei, ironicamente. Ele permaneceu calado. “Que tal outra coisa?”, sugeri. “Gostaria de beber um copo de sangue”, falou. Ele fazia isso depois de degolar suas vítimas. “Posso falar com o cozinheiro e pedir para que guarde o sangue de um dos frangos que teremos para o almoço”, respondi, novamente com ironia. “Então eu não quero nada”, afirmou. “Deseja almoçar?”, insisti. “Não!”, respondeu-me.
“Quer conversar sobre algo? Qualquer coisa?”, disse pra ele, que permaneceu quieto. Eu olhava um homem frio. Muito frio. A impressão que tinha era a de que o prisioneiro era mórbido por dentro. Não demonstrava nenhuma alteração emocional. Como se fosse de pedra. “Você fuma?”, me intimou, quebrando o silêncio. Mostrei o maço de cigarros que ainda estava lacrado. “Eu fico com eles”, completou. Era o seu último pedido, ao menos foi como interpretei. Dei o maço a ele, e uma caixa de fósforos. “Pode conversar com o capelão se quiser”, falei. “Eu não creio em deus, eu creio no diabo”, rebateu.
“Você andará sem algemas pelo corredor. Ninguém vai te tocar. Chegará até a sala pelas suas próprias pernas”, informei. Ele não me comentou nada, mas notei o seu olhar fixo em meus olhos. Silêncio. Algum tempo depois, “Eu não temo a morte. Eu a amo!”, me disse. “Preciso revelar mais alguns detalhes referentes ao procedimento”, observei. “Vá em frente”, atendeu. Eu podia sentir a vontade com que fumava. Um pedido bem razoável e, em todo o caso, mesmo sabendo que havia dado o meu maço de cigarros, continuei tranquilo, porque tinha outro no carro.
Contei tudo em detalhes, sem esconder nada do cara. Não me interrompeu em nem um único instante, manteve-se anônimo o tempo todo. “Eu não tenho mais nada a lhe confirmar quanto ao procedimento. Alguma dúvida?”, falei. “Quero que fique com o meu diário. Leia se quiser!”, me disse e, acendeu outro cigarro. Mais um pedido, o segundo. Confesso que fiquei curioso. Então, como sabia que a sua cela seria limpa no dia seguinte e, que todos os seus pertences teriam o fim apropriado, já que não tínhamos notícias de nenhum parente interessado, aceitei.
Andei até a porta da cela, mas, antes que saísse, o capelão deu um passo adiante, como quem me esperava sair para entrar. Coloquei a mão em seu ombro, “Ele não deseja falar com o senhor”, disse. O capelão fez um rosto como quem realmente não acreditava, mas interrompeu o seu movimento e aguardou no corredor. Tranquei o cadeado e os guardas recolheram suas armas. Andávamos lado a lado e nenhuma palavra era pronunciada.
Quando saímos da ala da morte, combinei tudo com os guardas e o capelão. Ficamos a sós, eu e o capelão, que insistia em permanecer diante de mim. “O que o senhor deseja?”, perguntei. “O que é isso?”, disse, apontando para o calhamaço de papel que eu segurava. “Ainda não sei. O condenado falou que era um diário. Deseja ler?”, indaguei. “Não. Mas espero que não se deixe levar pelas palavras do demo, meu filho. E mesmo que este homem não deseje o perdão, vou orar em silêncio por ele, no momento final”, afirmou, ao tempo de fazer o sinal da cruz e sair em direção da capela.
Eu já comandava execuções fazia um bom tempo, mas nunca, em todos esses anos de profissão, havia encontrado um matador como aquele, capaz de sequestrar a minha alma com um simples olhar. A sua perversidade era notória em seu semblante, em seus gestos e até mesmo em seu tom de voz. Enquanto andava, esses pensamentos rondavam a minha cabeça e, quando me dei conta, estava diante da porta de entrada que dava passagem para o pátio onde estacionei o carro. A cerração densa parecia uma cortina de frio, mas não havia outro jeito, eu tinha de chegar ao meu automóvel para pegar o maço de cigarros.
Preparei-me e fui ao pátio. A sensação térmica era profundamente negativa. A neblina transformou-se em uma garoa gélida, que chegava ao meu rosto e me fazia sentir o impacto vigoroso do clima. Entrei no carro com a sensação de que estava congelado. Acendi um cigarro e notei a chegada da neve num piscar de meus olhos. Já era meu segundo cigarro e o tempo não dava trégua. Olhei para o calhamaço de papel no banco do carona: “O paraíso da morte”, como que um título. Um dos trechos dizia, “Hoje pela manhã, olhei para a sombra e a luz que habita o cárcere. Encontrei homens lendo em suas celas em busca de conforto. É mais uma prova de que sou distinto deles e de qualquer um. A morte me foi próxima sempre. Eu quero matar para encontrar o abismo. Essa é a diferença, pois eles, em suas celas, desejam tão somente matar. É por isso que aceitam a bíblia e o capelão. Querem perdão celestial. Eu não, eu não tenho medo da morte”.
Enquanto lia o seu diário, o degolador me soava ainda mais fantasmagórico e letal devido a sua psicose. Algo monstruoso como eu jamais havia encontrado, nem mesmo no corredor da morte. Cativo, segui com a leitura: “Sei o que sou. Mato porque essa é a minha natureza. Uso a faca e aprendi todos os seus segredos. Estudei muito de anatomia. Quando cursei medicina, me debrucei aos cadáveres para aperfeiçoar a minha técnica de corte e fazer o que faz um escorpião, matar”. Os vidros embaçados e a fumaça do cigarro tomaram conta do ambiente. Sem saída, eu abri o vidro do carro e tentei aguentar a nevasca. Olhei o centro de contenção e me peguei pensando que, além daquelas muralhas, o degolador esperava pelo seu carrasco.
Foi um alívio quando ultrapassei a porta e encontrei o calor que vinha do sistema de calefação. Peguei um café e acendi um cigarro. Fiquei ali, parado, na expectativa pelo momento final. Eu tinha trinta minutos ainda. A cada gole de café, dava uma tragada profunda. Depois de três cigarros e três copos de café, ouvi uma voz, “Está na hora, meu filho”. Era o capelão, acompanhado pelos quatro guardas e o médico responsável. De volta ao corredor assombroso, pensava na morte e, nem me dei conta de quando cheguei até a cela. Só parei porque notei a freada dos que estavam comigo. O degolador estava em pé, diante da porta. Imóvel, olhava em direção aos meus olhos e mantinha suas mãos na vertical.
O condenado não criou problemas e caminhou pacificamente até a sala de execução. Deitou-se na maca e acomodou-se na posição adequada, como eu o instruí. Passei as cintas de couro em seus tornozelos, em seus braços e em seu tórax. Depois conectei a agulha em sua veia e aos canais que conduziriam três drogas para a sua corrente sanguínea. Enquanto isso, o capelão se pôs ao seu lado e, calado, o olhava com caridade. Provavelmente rezava em silêncio, como disse que faria. Na sala de expectador, do outro lado do vidro grande e espelhado, sabia que estavam as testemunhas. Não sei quantas, mas devia haver uma plateia lá fora, representando suas vítimas. Do outro lado do vidro menor e também espelhado, no ângulo oposto da cabeça do condenado, o médico aguardava por mim. Existe um sinal previamente combinado, entre eu e esse médico. Mas o condenado nunca sabe qual é. Estava tudo pronto. “Quais são as suas últimas palavras?”, perguntei. “Torna-te aquilo que és”, respondeu, citando Nietzsche.
Chegou o meu momento. Cruzei meus braços. Era o meu sinal e, o ritual de execução iniciou. Primeiro recebeu uma aplicação de Pentanol de Sódio, um sedativo anestésico que o induziu ao sono em trinta segundos. Segundo, ganhou uma dose de um agente paralisante, Pancurônio Bromide, que estagnou todos os seus músculos. Terceiro, enfrentou uma última quantidade de uma droga final, Clorido de Potássio, que parou o seu coração. Um procedimento de quinze minutos. Chamei o médico designado, que verificou seus sinais vitais e constatou a morte do sanguinário e lendário degolador. O capelão fechou os olhos do morto e fez o sinal da cruz, antes de sair na companhia do médico. Eu fiquei ali, petrificado, olhando para o cenho pálido do matador mais cruel que conheci, ao tempo em que recordava um trecho do seu diário: “No dia da minha execução, vou pro inferno. E lá, por entre as chamas ardentes, esperarei pela chegada do meu carrasco. Para degolá-lo aos olhos do diabo e beber o seu sangue”.
Não demorou muito e a turma do saco preto chegou, “Com sua licença”, disse um dos rapazes. A sua fala quebrou o meu transe e eu percebi que tinha de ir. Assim que passei pela porta, encontrei o médico, os quatro guardas e o capelão, que fazia uso da palavra, talvez tentando iluminar o dia funesto. No entanto, não compreendi nada do que pronunciava. “Então, que tal um café?”, disse um dos guardas. “Não, obrigado. Vou pra minha casa”, argumentei. E antes que ouvisse qualquer coisa, saí andando.
Eu tinha muito a pensar. Quem sabe até a temer.