Navegando por águas escuras

POSTADO POR: admin ter, 30 de setembro de 2014

O capitão havia avisado ainda no porto que não toleraria corpo mole. O ritmo era alucinante e tínhamos uma grande meta pra cumprir, a nossa missão era aumentar em 30% a quantidade de pescado. E este tipo de cobrança rivaliza a tripulação.

Passamos a noite inteira arrastando as redes e a cada tonelada pescada eu me sentia mais aliviado, porque um marujo experiente como eu sabe que não bater uma meta significa que alguém, ou até mesmo todos, podem ser dispensados.
Mantinha meus olhos fixos em meu serviço, mesmo assim, eu permanecia atento aos homens em minha volta, afinal, dois novatos enfrentavam a sua primeira pescaria em alto-mar.
Algo apitava dentro de mim, porque eu contava a todo instante o número de marujos no convés e a conta não fechava. Estávamos todos vestindo os nossos macacões térmicos, nossas capas de chuva e nossas botas impermeáveis.
Há um rigoroso padrão de segurança no mercado da pesca industrial feita em alto-mar, porque pescar afastado da costa é antes de tudo um risco, e o uniforme em cor de laranja deixa todo mundo igual, é impossível reconhecer qualquer um.
“Quem está faltando, porra?”, era o que eu pensava.
Ficava imaginando, ou melhor, torcendo pra que eu estivesse muito cansado e houvesse contado errado. Perder um homem gera transtornos pra companhia de pesca e a retaliação acontece sempre de cima pra baixo.
Quando amanheceu estávamos próximos do porto com a certeza de que havíamos batido a meta, porque tomamos o caminho de volta com o porão do navio lotado, mas com o dia claro ficava evidente que faltava alguém.
“Um de nós perdeu um dedo e simplesmente não está no convés, não deve ter acontecido nada sério demais”, era o que eu tentava pensar pra que pudesse me sentir melhor.
Notei que o porto estava agitado, com ambulância e toda a equipe de socorro, e embora isto fizesse parte das normas de segurança da companhia, eu sabia que algo estava errado, dava pra sentir a diferença na voz do capitão que cantava as ordens pelo sistema de som do navio.
A minha intuição começava a me preocupar, porque embora um navio do tamanho do nosso tenha uma tripulação muito grande e nem todos sejamos amigos, eu entendo que somos um time, na minha cabeça, ninguém pode ficar pra trás.
Logo que atracamos notei que um corpo desceu e rapidamente fora colocado dentro da ambulância embalado em um saco preto. Não demorou muito e a notícia chegou, um novato enroscou-se na rede e fora pra dentro da água durante o arrasto.
“Porra, mas que merda”, pensei.
A gente sempre avisa, mas nem todos entendem que é bom ouvir quem tem mais experiência, não se trata de obedecer, mas de ser esperto. Quem está próximo da rede precisa ter em sua cabeça que é bom prestar muita atenção no arrasto, porque se tem algo impossível de conseguir, é sair vivo de uma rede de arrasto em alto-mar.
Cheguei até o bar do porto e matei uma pinga de alambique. Eu tinha a esperança de que algumas doses da malvada pudessem queimar a tristeza que eu sentia. A vida é foda. A morte é foda. Mas nem mesmo uma garrafa inteira de água-ardente pode mudar as merdas que os homens fazem. Em poucos dias uma auditoria chamaria a cada um de nós a prestarmos esclarecimentos, que merda, eu sabia que tudo isto ia feder muito mais do que peixe podre.