Minha doce, doce infância…

POSTADO POR: admin sex, 26 de outubro de 2012

Minha doce,
doce infância…
Sobreviver inexistindo – O desabafo de
Matheus Fritz

Ah,
como não lembrar minha doce, doce infância!
O
final dos anos 80 e o comecinho dos anos 90 no subúrbio da cidade do Rio eram
mágicos! Às vezes, já bem cedinho, acordávamos ao som de tiros (esqueça
calibres, eram todos eles)… Vovó, com as mãos trêmulas, enquanto esboçava
tranquilidade, colocava à nossa frente aquele pão dormido mequetrefe com o café
com leite de sempre. Ouvíamos a Rádio Relógio. O cheiro da casa velha era de
fumaça dos cigarros com desinfetante de pinho. Os gatos esfregavam os rabos em
minha canela pedindo atenção matinal, mas eu não dava a mínima para eles.
Sempre preferi os cães.
Minha
avó me levava à escola e, por vezes, precisávamos desviar de algum defunto no
caminho, até mesmo no portão de nossa casa. Eu, no começo, perguntava: o que
aconteceu com o moço, vovó? Ela dizia que ele estava machucado, porém o homem
da ambulância lhe daria uma injeção mágica e o sujeito ficaria bom no hospital.
Ou não dizia nada. Apenas me puxava pelo braço. Andava firme, rumo ao profundo
pesar contínuo da existência condicionada. Era assim.

em 1990 eu estava grandinho e ia à escola desacompanhado. Comecei  a reparar
melhor nos defuntos pelas ruas. Não existia nenhuma ambulância mágica… Eram
os mesmos mortos dos programas da TV. Eu estava em um dos cenários. Lógico! O
entendimento foi vindo aos poucos… A infância camufla as guerras e demais atrocidades
humanas como coisas normais, pois na infância o sujeito está assimilando o
funcionamento do viver aqui nessa merda. No inicio da formação intelectual de
um indivíduo tudo é passível de normalidade, até o canibalismo. Conforme fui
crescendo, infelizmente, as coisas se revelavam. E o que eu assimilava sobre os
adultos não era nada bom.
Um
oásis em minha vida era a casa do meu tio, na Região dos Lagos. Lá não existia
aquele som repetido, desesperado. Havia disparo de ondas quebrando na areia… E
era só o que os meus ouvidos precisavam, mas meu tio colocava Beatles na
vitrola, The Who, e tantas bandas boas que só de pensar me dá um nó na cuca de
felicidade! Depois eu voltava pra casa, e no caminho diário dos mortos não
ouvia as músicas dos Beatles nem o som do mar. Ouvia tiros, e outros disparos
eletrônicos de gritos esquizofrênicos, débeis em agonia, seguidos de outras perseguições
sonoras… Eu ouvia seus ruídos e pensava: Calem a
boca animais! Ora, eu sou como vocês, mas não estou defecando de fora para
dentro! Estão loucos? Vamos caminhar como coisa melhor! Existe coisa melhor!
E
eu, então, me esquivava da rua, ficava em casa escrevendo quadrinhos,
desenhando, chutando bola contra a parede.. Tudo era uma porcaria lá fora, uma
selva de pequenos diabos devoradores de alegria, sem contar que eu começava a
destoar da molecada da área (um molequinho gordo, branco engomadinho articulando
muito bem as palavras e raciocinando sobre tudo). Ou seja: eu levava porrada.
Era esculhambado. Até o dia em que minha mãe resolveu matricular-me em uma academia de caratê, inspirada pelo lendário senhor Miyagi (o mestre do
filme Karatê Kid original). Foi um santo remédio aquela coisa toda da disciplina
oriental, autoconfiança, controle. De lá eu acabei caindo no boxe, e depois no
judô… A verdade é que eu fiquei fascinado em aprender métodos para quebrar a
cara das pessoas. Fascinado! Uma arte muito válida para quem vai viver sem
posses aqui nas piores áreas da Terra é saber se defender. Às vezes, saber quebrar
a cara de alguém se torna necessidade certa, assim como ter papel higiênico e
saber refletir antes de abrir a boca.
Ah,
minha doce, doce infância de ontem… Metade dela eu passei levando porrada
física e psicológica, a outra metade escondido em tatames, ringues, livros e
campos de futebol. Procurava atividades extras e mundos novos, tudo para
esquecer a realidade. A minha triste realidade de ver o mundo que eu quero, sem
relevar em mim o que me apresentam como mundo real. De buscar um melhor nas
coisas que eu realmente não sei se existe.
Flashes
de briga, vultos de correria, tiros, necessidades, injustiças, privações. Adultos vagabundos; egoístas, neuróticos, covardes.
Minha doce, doce infância… Quem levou você de mim antes que eu pudesse saber
o que você era…? O tempo, ou a necessidade de inexistir para seguir existindo?
(Vai
uma garrafa de vinho Vistamar Cabernet para recordar sua doce, doce infância?)