Mais do que um reflexo no espelho

POSTADO POR: admin qua, 30 de abril de 2014

“Conseguiu demovê-la?”, perguntou o mais novo.

O silêncio do mais velho disse tudo.
Ao final do dia, ele chegou. Retirou seu chapéu e com um breve inclinar de queixo, cumprimentou os irmãos.
Os dois o acompanharam até o quarto da mãe. Antes de entrar, encarou os moços, e com um gesto barrou a entrada deles.
Logo fechou a porta. Olhou bem fundo nos olhos dela. Estava magra. Demolida. Um vestido preto, de gola branca e bolinhas também brancas, adornava seus ossos.
Pegou a Bíblia que carregava para o momento, e a entregou nas mãos da enferma. Ela encarou o livro sagrado durante longos instantes.
Triste, não disse nada, nem mesmo a abriu. Mas o seu tato afagou toda a capa, como quem tateava algodão, como quem acarinhava a si mesma com doçura e lamento.
“Pretende ler um trecho?”, perguntou.
Ela permaneceu em silêncio, e uma lágrima rolou pela sua face deformada. Um segundo lento. Logo que a primeira gota despencou de seu queixo, atingiu a Bíblia em sua mão.
“Vou retirar o espelho em frente da cama”, disse ele.
“Não, eu não tenho medo. Pode injetar”, respondeu ela.
“Se morrer diante do espelho, sua alma vagará dentro dele por todo o sempre”, observou ele.
Ela simplesmente deixou que sua cabeça caísse em seu ombro, e permaneceu em silêncio.
“Talvez, ela não queira ir embora”, pensou.
“Que a paz acompanhe você”, disse, e injetou calmamente a substância.
Ela não sofreu. Foi rápido, limpo e humano, tudo que um câncer não é.
O médico recolheu tudo em sua maleta. Antes de sair, observou o espelho e a viu a rir. “Que o Criador tenha piedade de sua alma”, pensou ele.
Ao olhar o corredor, notou que os irmãos estavam parados um ao lado do outro, juntos da escada.
“Não contem a ninguém. Eutanásia é crime”, disse ele.
Depois de um breve aperto de mãos, deixou a casa dos Brawn e tomou a estrada.
Ao olharem o corpo da mãe, os garotos choraram. Foi uma grande tristeza. Os últimos anos não foram bons para a família Brawn. Os prejuízos com o trigo, por conta do granizo, as geadas rigorosas, e a doença da mãe, trouxeram dívidas e ruína.
Meio-dia do dia seguinte, a matriarca estava enterrada. Os irmãos demonstravam uma falta de entusiasmo sufocante. Permaneceram a chorar diante do túmulo, enquanto todos partiam para suas casas.
Foi quando o credor se apresentou para reclamar as chaves, queria formalizar tudo o mais rápido possível. Afinal, era preciso uma inspeção para concluir a negociação.
Seguiram todos os três para a fazenda. Embora a comoção, como previamente combinado, os rapazes cumpriram o trato, e somente destacaram dois cavalos para que pudessem partir para a cidade grande. Os dois trabalhariam em uma grande fábrica.
“Bem, senhores, tudo está como devido. Tenham certeza de que cuidarei muito bem da fazenda, em consideração à família Brawn”.
O credor dos Brawn permaneceu no quarto da falecida matriarca. Pela janela, observou a partida dos irmãos. Os dois tomavam seus caminhos com um punhado de moedas em seus bolsos, a dor da perda da mãe, e a entrega da fazenda.
Contudo, um vento frio arrebatou o homem que tomava posse. Intrigado, sentiu como se fosse observado. Seus olhos se esbugalharam ao perceber dentro do espelho, a imagem da falecida matriarca da família Brawn.
“Sua vida, é minha”, disse ela, vingativa.
Logo que o mesmo desfaleceu, sua alma foi abduzida para dentro do espelho. Para penar ao lado de uma mãe que chorava a perda de tudo e todos.