Hora não marcada

POSTADO POR: admin ter, 03 de agosto de 2010

O som do trinco da janela do quarto se fechando era o sinal de que tudo estava pronto e armado para esta noite, foi necessário todo o período da tarde para preparar o ambiente para a sua visita indesejada. Conferiu rapidamente com um passar de olhos, todos os apetrechos cuidadosamente posicionados como descrito no livro emprestado por Lúcia. Se questionou novamente o porque de não ter falado a ela o verdadeiro motivo do seu súbito interesse por ocultismo, a resposta veio quase que imediatamente, alertando que não seria justo envolver uma outra vida inocente no pagamento dos seus pecados.
Agora vinha a pior parte,…esperar. O relógio digital de pulso marcava vinte duas horas, e sua visita possuía uma pontualidade impecável, faltava pouco. Durante toda a semana a rotina noturna tem sido a mesma, estava cansado, abatido e a ponto de enlouquecer, se isso já não tinha acontecido. Mas essa noite ele estava decidido a colocar um basta nessa situação, precisava das suas noites de sono de volta, e estava disposto a lutar por elas.
Dessa vez estaria de prontidão e armado contra seu visitante.
Ligou o som, deitou na cama e repousou o punhal ornamentado em seu peito. O livro não falava nada sobre a música, era um toque seu, na tentativa de aliviar um pouco a tensão que o momento exigia.
Só percebeu que cochilara quando acordou. A música ainda tocava, mas distorcida por uma rotação diferente impossibilitando a sua identificação. Tateando com as mãos conferiu a posição do punhal que estava logo ao lado, ficou de pé e esfregou os olhos.
Ele estava chegando.
Na rua, o vento se acelerava, e pela janela do quarto se via todo tipo de sacolas, embalagens e lixos atingirem com a força da ventania a altura do segundo andar da casa , e ainda assim ele imaginou que talvez estivesse mais seguro lá fora.
Se concentrou na música. O display do aparelho indicava que estava sendo executada a sexta faixa do CD, com um rápido cálculo mental conclui que o cochilo durou tempo demais para quem deveria estar de guarda, talvez sua visita já estivesse chegado, tentou o relógio de pulso por pura teimosia, mas como esperado ele indicava apenas uma contagem regressiva que vinha sendo reduzida toda noite, e já não faltava muito para chegar ao fim. Reconheceu alguns acordes em meio a distorção infligida a música dos Rolling Stones, e se espantou ao notar que sua rotação estava correta, ela apenas tocava ao contrário.
A luz do quarto começou a piscar, indicando que a espera terminara.
As velas posicionadas foram acessas no instante em que se tornaram junto com as pálidas luzes eletrônicas do aparelho de som, as únicas fontes de luz do ambiente, mais do que o suficiente para iluminar a presença de uma nova pessoa perto da janela do quarto.
-Fico honrado que tenha preparado uma festa de boas vindas para mim, mas não precisava, eu já me sinto de casa.
-Não sei que tipo de monstro é você. Mas as suas visitinhas noturnas acabam hoje. – enquanto dizia isso, perfurou a ponta do indicador com o punhal e deixou seu sangue gotejar sobre uma das velas que faiscou por alguns instantes.
-É,..eu sei! Não que fosse necessário brincar com sua mente fraca durante todas essas noites. Mas o que posso dizer,…eu acho divertido, me condene. Ops,…eu já sou um condenado.
As palavras eram só mais um joguete. Durante todas as noites que passara prestando atenção nas palavras, na esperança de que respondessem algo, mais perguntas foram geradas. Tinha que esquecer as palavras e se concentrar no que deveria fazer.
-Dessa vez eu vou te mandar de volta pro inferno de onde veio.
-Verdade? E como pretende fazer isso?
Ele não pretendia responder essa pergunta, mas vacilou ao olhar de lado para o livro de Lúcia aberto encima do aparelho de som. O ser sombrio acompanhou seu olhar até se deparou com o livro, e o pegou, fazendo o aparelho desligar e a música cessar.
-Ah sim,…como eu poderia esquecer o livro. Ótimo! – virou o livro em sua direção com as páginas abertas e apontou para a página ilustrada com a imagem de um símbolo- E você tem certeza de que fez tudo direitinho como indicado no livro?
Por mais que ele ignorasse suas palavras, a pergunta possuía um tom de ironia impossível de não notar e se preocupar. Então duvidou do minucioso trabalho que tivera durante a tarde preparando todo o ritual descrito no livro.
-Você está querendo me confundir, mas estou preparado para selar definitivamente as portas que te trazem até mim.
-Confundir você? Não tenho tempo para isso, confundir você é um trabalho que eu preferi terceirizar.
-Como?…
-E por falar em tempo, quanto ainda lhe resta?
Por instinto, ele se distriu olhando novamente o relógio, com o cronometro a apenas sete segundos do fim.
Em um movimento rápido o livro foi lançado ao ar, e a distancia entre os dois encurtada. O punhal que antes era seguro firme em suas mãos agora estava sendo usado para perfurar lentamente seu pescoço pelo seu agressor. A janela se abriu de forma violenta e o vento entrou apagando as velas. Seu rosto apavorado passou a ser iluminado apenas pelos olhos incandescentes de seu algoz.
-Você executou o ritual corretamente, mas seguindo o livro errado. Confuso o suficiente agora?… 
Um baque surdo no assoalho indicava que só agora o livro chegava ao chão, atraindo os olhares de ambos. Com o punhal cada vez mais fundo na garganta a tentativa de clamar por Deus, saiu abafada e banhada a sangue.
-Viu, …não somos tão diferentes assim. Parece que conhecemos as mesmas pessoas.