Coisas que o RPG me ensinou sobre narrativa de histórias

POSTADO POR: admin seg, 15 de julho de 2013

Quando fui entrevistado no Talk Show ‘Tem Graça ou Não?’ (clique aqui para ver os vídeos da entrevista), em determinado quadro do programa tive que encarar algumas perguntas dos telespectadores e me deparei com uma questão que soava mais ou menos assim: ‘Maldito, você acha que os jogos de RPG podem auxiliar, de alguma forma, alguém que esteja iniciando uma carreira como escritor?!’
Para quem já está familiarizado com esse hobby fantástico a resposta pode até parecer meio óbvia, tanto que no momento a respondi em poucas palavras. Mas de lá pra cá essa questão veio tomando forma na minha mente e achei que, com mais tempo e espaço, eu deveria e poderia explicar essa ‘co-relação’ com mais desenvoltura para as pessoas que não conseguiram fazer esse link entre a literatura e o RPG.

Bem, só posso falar por mim, e digo que meus anos de experiência como ‘Mestre do jogo’ me ensinou muitas lições valiosas. E muitas dessas lições são especificamente aplicáveis ​​à minha escrita. Então, aqui estão algumas das lições mais importantes que aprendi jogando, e hoje aplico em minhas histórias.

Algumas palavras rápidas sobre RPG: Para aqueles que não conhecem o RPG, o conceito é simples: É um jogo de interpretação de papeis onde as pessoas rolam dados para testar as habilidades de seus personagens dentro de um cenário de fantasia. Esses personagens dos jogadores formam um grupo que sai em aventuras, derrota bandidos e lança mísseis mágicos na escuridão. Basicamente. Eu joguei meu primeiro jogo oficial quando tinha 12 anos de idade. Desde então tenho jogado com dezenas de grupos, e mestrando para outros, explorando uma variedade de sistemas de RPG de mesa. O jogo é divertido, social, cria desafios, resoluções de problemas, e é um exercício de criatividade em grupo. Com certeza eu não sou o único a afirmar que o RPG pode fazer de você uma pessoa mais eficaz .

Agora sobre os tópicos…
1:Os personagens são mais interessantes quando eles são falhos.
Imagino que como a maioria dos iniciantes, eu me enganei quando comecei a jogar. Antes de começar uma seção de jogo, eu costumava destrinchar as regras dos livros em busca de combos e esquemas que pudessem deixar o meu personagem o mais overpower possível. Visando colocar altos valores em suas características e tornando as probabilidades das roladas de dados mais favoráveis.
Até que um dia, na pressa para jogar, tive que pegar um personagem que já estava pronto, ficando apenas com o trabalho de lhe dedicar um nome antes de iniciar a aventura. Assim nasceu o monge Kim Zen para uma sessão de AD&D ambientada no sombrio mundo de Ravenloft.

Apesar de ligado aos seus votos, o monge Kim era um jovem extrovertido, de aparência frágil, não muito inteligente, e com uma tremenda falta de bom senso. Sem poder seguir os caminhos tradicionais durante uma batalha, eu precisava calcular minuciosamente meus movimentos ou um simples erro poderia ser fatal para a curta vida casta de Kim Zen. 
E eu acabei gostando de jogar com esse personagem. Parte pelo desafio imposto, parte pelo sentimento de proteção pelo seu caráter frágil. Mas o grande atrativo era algo mais significativo. Eu percebi que a melhor jornada heroica não é a história de uma pessoa incrível fazendo coisas incríveis. É a história de uma pessoa falha, que quando recebe o chamado de um desafio incrível, encontra dentro de si algo verdadeiramente extraordinário para encara-lo.

2:Você pode construir um mundo através de “encontros aleatórios”.
Não é apenas a etapa final de uma aventura que coloca os personagens em perigo. E o plot do enredo não precisa ser o único elemento significativo de qualquer encontro.
Em  O Hobbit , todo o grupo é levado à beira da morte várias vezes. A mistura de encontros que não têm relação direta com o enredo principal ajudou a expandir o mundo de Tolkien, e criou as bases para a sua monumental trilogia do Senhor dos Anéis. Você pode usar encontros semelhantes para explorar novos territórios da sua história. Estes encontros aleatórios não são inúteis, eles servem para criar uma sensação persistente de perigo, mostrar a definição, e explorar os personagens.

3:Lembrar as pessoas do objetivo, e mante-las interessadas na história.
Apesar do conselho anterior sobre encontros aleatórios, as básicas leis da física do RPG devem ser aplicadas: Evite ter mais de um “encontro casual” entre os pontos da história. A aventura não precisa ser complexa ou substancial, simplesmente lembre os leitores, ou personagens, que o objetivo ainda existe, as conseqüências ainda pesam sobre o horizonte, e o grupo, ou protagonista, está fazendo progressos, ainda que lentamente, para alcançar esse objetivo.
Voltando ao  O Hobbit, lembre-se que, apesar dos heróis enfrentarem variados desafios, sempre nos é apresentado a imagem repetida das Montanhas Sombrias ao fundo. Não é só a lembrança do objetivo, mas também o fato de que ele está ficando cada vez mais perto, que mantém Bilbo e os leitores empenhados em não desistirem.

4:Que personagens perdem algumas vezes.
Eu deixei meu amigo morrer. Foi por isso que ele passou meses sem falar comigo. Bem, na verdade me refiro ao personagem de um amigo, em uma aventura onde eu era o mestre e conduzia a história. Mas sua conexão com o personagem era tão forte, que ele acabou levando o caso para fora do jogo, e pro lado pessoal.
É triste. Mas há situações onde os personagens simplesmente morrem. E podem ocorrer perdas ainda maiores onde o vilão não é derrotado, a princesa não foi resgatada, o tesouro não é encontrado, ou o grupo acaba se desfazendo após falhar em seu objetivo. A natureza ficcional não faz as perdas insignificantes.

Qualquer que seja a perda, permitir que personagens percam algo valioso para eles não destrói a história, a torna mais profunda, mais rica e mais real. Uma aventura de RPG pode se tornar uma forma de aprender a enfrentar situações que não podemos controlar, lidar com a perda, e tornar-se mais resistente.

5:Por uma questão de agilidade.

Uma coisa que os jogadores gostam em minhas campanhas é que elas são ricas em detalhes. O fato de eu gastar um tempo para parar e falar sobre o aparecimento de NPCs (personagens não-jogadores), os detalhes sensoriais de um ambiente, ou as sensações físicas de lançar um feitiço. No entanto, há também um momento para simplesmente pular essa parte. Como os jogadores costumam dizer: “Por uma questão de agilidade….”. Então, resumir o que acontece com os personagens ao longo de algumas horas, dias, semanas ou até meses, tem seus benefícios.

Relatar detalhes suficientes para que o mundo pareça real e os jogadores sintam que são participantes ativos, é crucial. Mas uma vez que você estabeleceu as bases necessárias para seguir em frente, um dos trabalhos mais importantes de um contador de histórias é evitar que sua audiência fique entediada.

6:A prática irá melhorar alguma coisa.
Já joguei em grupos com membros tão diversos quanto se pode imaginar, mas, independentemente de como as pessoas pareciam inteligentes à primeira vista, colocando-os em uma situação onde tiveram que usar a criatividade, presenciei os mais diversos resultados. Já vi pessoas adotando novos personagens, pensando a partir de novos ângulos, e chegando com idéias engenhosas que quebraram toda uma campanha.
Talvez seja porque o jogo mostra um mundo onde “adquirir experiência” é a chave para se tornar uma pessoa mais poderosa e capaz. Muitos autores enfrentam períodos de dúvidas onde eles acreditam que “não são bons” em escrever certas coisas. Mas escrever, como qualquer coisa, pode ser melhorado com a prática. Se você não é “bom” (em qualquer parâmetros que você definiu para si mesmo), isso não significa que há algo fundamentalmente errado com você. Fracasso é parte do processo , não é um indicador de que você tenha escolhido o sonho errado. Talvez você só precisa ganhar um nível ou dois.


Mesmo não tendo tido a oportunidade de jogar tanto quanto eu gostaria, estou grato pelas experiências que o RPG me deu. Eu sinto que eu sou mais criativo, social, espirituoso, e organizado do que teria sido de qualquer outra forma. Alem de aplicável em meu trabalho, o jogo me proporcionou incontáveis ​​horas de narrativa experimental. 
Espero que esse texto tenha lhe dado algum insight sobre ‘narrativa de histórias’, ou que pelo menos o tenha deixado curioso suficiente para procurar o seu primeiro livro de RPG, e jogar!