Autor de ‘Gomorra’ comenta as ligações entre a Máfia italiana e o Brasil

POSTADO POR: admin sáb, 27 de outubro de 2012

Desde 2006, pelo menos 14
policiais com dois carros blindados à disposição se alternam 24 horas por dia
na escolta do escritor e jornalista italiano Roberto Saviano, 33.
Jurado de morte pela máfia,
Saviano dorme em hotéis e apartamentos alugados, nunca por mais de um mês. “Não
consigo imaginar meu futuro. Gostaria de ter uma vida normal, com um pouco de
liberdade”, afirma o autor, que não é casado nem tem filhos.
Ele se diz “às vezes”
arrependido de ter escrito “Gomorra”, o livro-reportagem sobre a extensão do
poder das organizações criminosas que o tornou internacionalmente conhecido em
2006.
Agora, a Companhia das Letras
está lançando seu mais recente livro, “A Máquina da Lama”. A obra é inspirada
em um programa que foi apresentado pelo próprio Saviano na TV estatal italiana,
em 2010, e que chegou a uma audiência de 10 milhões de pessoas, tendo até mesmo
desbancado uma partida entre Inter de Milão e Barcelona.
“Vieni Via con Me” (vem
embora comigo), título do programa, escancarou as mazelas do país. Dos
empreendimentos imobiliários da máfia calabresa em Milão aos lucros da Camorra
e o interesse na manutenção da crise do lixo em Napóles (que já dura duas
décadas).
Um programa de TV com essas
características não poderia passar incólume pelas pressões políticas, que foram
encabeçadas por Silvio Berlusconi, então premiê da Itália, e logo se
transformariam em censura, até que saísse do ar, mas não sem deixar um rastro
de polêmicas.
Saviano se transformou em um
ícone da luta contra as organizações criminosas, assinando periodicamente
artigos em publicações como “The New York Times”, o espanhol “El País”, e o
italiano “La Repubblica”.
O tom de denúncia e
indignação que sempre predominou em seu discurso continua, mas agora
acompanhado de uma certa melancolia, como se pode observar na entrevista a
seguir, concedida à Folha por e-mail.
-Veja a entrevista abaixo:

*
Folha – Qual é sua impressão do Brasil?
Roberto Saviano – O Brasil está vivendo um momento incrível. De
ex-colônia passou a esperança para colonizadores e colonizados: para Portugal,
Angola, Moçambique. É uma país extremamente complexo, que conjuga modernidade e
kitsch, reformas sociais e crescimento e que está se tornando central para a
história do mundo, um parceiro privilegiado da Europa. Tenho certeza de que
sairá do Brasil um novo caminho virtuoso, que contaminará os países em crises.
A Itália de hoje sonha com o que está ocorrendo no Brasil, isto é, brasileiros
que emigraram voltando a sua terra para nela investir, porque acreditam no
curso das reformas que vêm se dando.
Que laços há entre a Máfia e facções criminosas no Brasil?
O Brasil –como a Itália– paga um preço altíssimo ao narcotráfico. Os
grandes carregamentos de cocaína (produzida na maior parte na Colômbia) passam
pelo Brasil e isso equivale a dizer que a bolsa da coca está em suas mãos, isto
é, é no Brasil que se decide o preço do pó. A mercadoria sai em navios para a
África Ocidental, chegando à Espanha ou a Portugal. Em outros casos, vai do
Brasil diretamente para a Itália, para o porto de Gioia Tauro, na Calábria. E
isso é prova evidente dos laços entre as organizações brasileiras e a
“‘Ndragheta” [equivalente calabresa da Máfia].
Também a Camorra, da Campanha
[região de Nápoles], sempre teve laços com facções brasileiras. Basta pensar
que Antonio Bardellino, chefe do clã dos “casalesi”, chefe da organização
criminosa “dona” do território em que nasci e cresci e que me ameaçou de morte,
foi morto no Brasil, em 1988. No Rio de Janeiro, na casa em Búzios que ao que
parece dividia com Tommaso Buscetta, o “chefe dos dois mundos”, ligado à Cosa
Nostra e preso em São Paulo.
Como e por que o sr. se interessou pelo tema da Máfia?
Nascer, crescer, estudar –em uma palavra, viver em uma terra onde a criminalidade
pode tudo, tem laços com política e economia, decide a vida e a morte das
pessoas impõe uma tomada de consciência. Nascer no sul da Itália significa se
perguntar constantemente que lado assumir, como reagir, o que fazer. Não dá
para ficar indiferente. No sul todos, diariamente, tomam um partido.
É possível estabelecer um vínculo entre a crise financeira global e o
crime organizado?
As organizações criminosas têm em mãos uma liquidez enorme proveniente
do narcotráfico e, num momento em que isso é exatamente o que falta, fica fácil
de entender qual é o vulto de seu poder de aquisição. Se as organizações não
são diretamente responsáveis pela crise econômica, é certo que agora elas estão
entre os principais atores e, quando houvermos saído da crise, as economias
nacionais de muitos países, entre os quais a Grécia, a Espanha e a Itália,
serão economias totalmente infiltradas por capital criminoso. E esse problema,
por incrível que pareça, não é visto como prioridade.
Como se estrutura e que métodos aplicam hoje as máfias, em relação aos
de seu passado?
As organizações têm negócios em todos os lugares possíveis. Usufruem de
cada novo canal, de cada tendência, se aproveitam de cada falha do sistema. A
estrutura e os métodos não mudaram muito; seria um erro deixar de lado regras
atávicas que determinam a manutenção das hierarquias e a possibilidade de gerir
organizações tão ramificadas. A força das organizações reside em sua capacidade
de aplicar estruturas e métodos do passado a novos âmbitos de investimento.
Como o sr. explica o fenômeno Berlusconi e qual é sua opinião sobre o
atual governo italiano?
Sobre o fenômeno, ou melhor dizendo, as duas décadas de Berlusconi,
sobram interpretações. Há 20 anos tentamos entender como é possível que ele
sempre consiga governar e, depois de mil justificativas, depois de ter tido
expostos seus vícios e fraquezas, nas eleições seguintes seu partido consegue
novamente a maioria. As explicações são muitas. Em primeiro lugar, Silvio
Berlusconi dispõe de potência midiática: TVs, semanais, primeiras páginas de
jornais, que lhe permitiram campanhas eleitorais incrivelmente incisivas.
Além disso, por anos
personificou o ideal de “self-made man”, que conseguiu tudo por mérito, força e
empreendedorismo próprios. Na percepção pública, mesmo se cometeu atos
ilícitos, o fez com astúcia, servindo-se das brechas de nosso sistema. “Quem
não teria feito igual”, justificam. E assim ele conseguiu erguer um império
imobiliário e midiático. Há muitíssimas lendas sobre ele. E aqueles que poderiam
tentar vencê-lo não conseguiram apresentar programas convincentes, não
conseguiram conquistar o eleitorado de esquerda, não conseguiram restabelecer o
front hoje baldio do comunismo.
O governo atual, por outro
lado, era necessário para recuperar a credibilidade internacional da Itália,
mas, depois de quase um ano, avaliando-o quanto ao aspecto das organizações
criminosas –porque, como já disse, a capacidade dessas organizações de se
infiltrar por completo no âmbito econômico durante a crise é exponencial– digo
que, como o precedente, esse governo conhece somente o lado repressor e não
ataca nem minimamente o aspecto econômico e fundamental dessas organizações.
O sr. acha que a opinião pública está mais consciente hoje de que a
Máfia é um mal?
Se não há homicídios, a presença da máfia em organizações criminais
passa, em muitas zonas da Itália, despercebida. Quando fazia “Vieni Via con Me”
[algo como “vem comigo”], falei das máfias do norte da Itália, e quem
ouvia não acreditava, apesar de que haviam investigações comprovando o que eu
contava. O então ministro do Interior, Roberto Maroni, que é da Lega Nord
[partido que reúne separatistas do norte italiano], disse que iria ao programa
ler a lista de todos os presos nos últimos tempos.
O que até hoje não ficou
claro é que a ala militar não existe sem a ala econômica dos clãs. As prisões
de pouco servem: a hidra tem nove cabeças, e se você corta uma, no lugar logo
nasce outra. É preciso dotar nosso sistema econômico de anticorpos para impedir
que as organizações criminosas se infiltrem em tudo, da coleta de detritos até
o transporte rodoviário.
Quanto da cultura italiana se liga às máfias?
A cultura mafiosa compõe somente uma parte da tradição italiana. Não a
chamaria nem mesmo cultura, diria mais uma atitude tradicional de apego –à
terra, aos bens, à virgindade, os valores familiares, as hierarquias
familiares. E tudo isso, soa estranho dizer, se liga estreitamente ao
turbocapitalismo. Então há, de um lado, o culto à virgindade, à propriedade, à
terra e a regras quase medievais; e, de outro, investimentos financeiros e
vanguarda econômica. A união desses dois ingredientes é que faz o DNA extremamente
forte e dominante das máfias.
Qual é sua opinião sobre filmes e séries como “O Poderoso Chefão” e
“Família Soprano”?
São produtos muito diferentes entre si. “O Poderoso Chefão” cunhou um
imaginário de certa forma épico. Prova disso é que os mafiosos –eu contei isso
em “Gomorra”– imitam cenas do filme em seu cotidiano e mandam construir casas
inspiradas na de Tony Montana. “Família Soprano”, por sua vez, vai no sentido
oposto e tenta mostrar a normalidade da vida de um “capo”. O lado brutal, criminoso,
mas também o dia a dia, às vezes ridículo, feito de pequenos grandes dramas, de
sessões de análise, de cabeleireiros, de problemas com os filhos adolescentes.
Talvez essa possa ser uma
maneira de desconstruir um imaginário. Mas “O Poderoso Chefão” e “Família
Soprano” são filhos de épocas distintas e acho que, tudo somado, se dirigem a
públicos diferentes.
O sr. acha que a Máfia pode ser vencida?
O juiz Giovanni Falcone, morto em um atentado mafioso na Sicília, em
1992, dizia: “A Máfia é um fenômeno humano e, como todos os fenômenos humanos,
tem um princípio, uma evolução própria e terá, portanto, um fim”. Eu espero com
todas as minhas forças que sim; mas, sem uma mudança radical na nossa ordem
econômica, não será possível.
O seu programa de TV sofreu censura?
A pior das censuras, a mais subterrânea, a mais sub-reptícia: os
contratos com os patrocinadores não se firmavam, o estúdio era pequeno e
isolado. Variava o número de blocos, uma hora quatro, outra três, outra dois.
Em suma, o clima era de total e constante incerteza. Uma forma incrivelmente
astuta de fazer desandar o programa e poder dizer: “Viram? O que vocês têm a
dizer não interessa, ninguém quer saber”.
O que o sr. acha da profissão de repórter, num momento em que a internet
é crucial para o mundo da informação?
A internet e as agências de notícias facilitaram muito o trabalho
tradicional do repórter, modificaram-no de forma profunda, não necessariamente
para o mal, como alguns sustentam. O jornalista tem agora uma terfa mais árdua,
mas mais estimulante: reunir as peças de um quebra-cabeças que estão espalhadas
à vista de todos. Tudo está à mão, mas não tudo é inteligível. Às vezes certas
partes escapam; em outras, não é possível relacionar certos fatos. É isso: o
repórter agora não é instado a encontrar a informação em primeira mão, mas
também (e sobretudo) a reelaborá-la, a explicá-la.
Que impressões o sr. guarda da experiência de fazer um programa de TV?
Chegar a milhões de pessoas é, sem dúvida, uma experiência incrível, que
causa uma vertigem que não se experimenta de outra forma. Saber que 12 milhões
de pessoas estão vendo você tira seu fôlego, bloqueia, turva a vista. É
inacreditável. Isso é o bom e o ruim ao mesmo tempo. Repetir um sucesso
fenomenal é impossível. Então existe o risco de, depois dessa vertigem,
ficarmos paralisados.
Por sorte, não foi o que
aconteceu conosco. O programa foi ao ar por um canal diferente –menor, com
menos recursos– em maio passado e continuou a ser um sucesso. Isso deixou
claro, para nós, que o que conta não é o canal, mas a mensagem. A mensagem que
tentamos passar, de novo, foi: as palavras são importantes; é preciso refletir
sobre cada uma delas. É importante olhar além das fronteiras do nosso país, mas
é fundamental conhecer e entender aquilo que acontece em países distantes que
se ligam ao nosso por relações econômicas que se estreitarão mais e mais.
Por isso interessa recordar o
que houve em 2004 na escola de Beslan, na Rússia [onde crianças foram mortas
por terroristas tchetchenos], como se vive nos “laogai” chineses, que são
campos de concentração modernos. Pensamos que a atualidade imediata, feita de
spreads e de agências de classificação de risco, pode dar lugar à compreensão
do que nos circunda. E esse pensamento foi reconhecido uma vez mais pelos espectadores.
Quais são os livros e pessoas que o sr. admira e por quê?
Seria uma longa lista e ainda assim esqueceria alguém. Mas eu quero
recordar Christian Poveda. Eu o conheci porque firmou um abaixo-assinado em
solidariedade a mim. Foi morto em 2 de setembro de 2009 em El Salvador por
causa do documentário “La Vida Loca”, uma obra-prima sobre as maras [quadrilhas
salvadorenhas]. Meu pensamento está com ele.
Quais são seus próximos projetos?
Estou escrevendo um novo livro e tenho muitos projetos para TV. Na Itália,
claro, mas também no exterior –espero chegar à Espanha e à Alemanha, onde se dá
muita atenção ao tema das organizações criminosas.
Como o sr. se descreve?
Como alguém em busca de uma vida normal. De um pouco de liberdade.
Como é seu cotidiano?
Vivo uma vida totalmente anômala. Alterno períodos de completa solidão e
isolamento e outros de máxima visibilidade, quando estou na TV ou participo de
eventos públicos. Isso faz a minha vida ser completamente esquizofrênica. Tenho
uma escolta de sete policiais militares quando saio e faço aparições públicas.
Nos percursos cotidianos, são cinco. Uso dois carros blindados.
A sua situação é comparável à do escritor Salman Rushdie?
Rushdie foi ameaçado de morte simplesmente por ter escrito “Os Versos
Satânicos”. A minha situação é diferente. Se “Gomorra” tivesse ficado restrito
àqueles ligados aos fatos, alguns colegas jornalistas, um ou outro advogado ou
juiz e alguns fanáticos por temas de crime organizado, a Camorra não teria se
sentido ameaçada. O que assustou os criminosos foi o enorme número de leitores,
seu interesse crescente pela dinâmica do crime. As pessoas queriam informação,
tinham sede de saber. Isso fez com que os chefões se sentissem vulneráveis e
daí vieram as ameaças.
O sr. se arrepende? Faria algo diferente?
Eu me arrependi mil vezes de ter escrito “Gomorra” e não outro livro,
que poderia ter me dado uma vida de escritor, e não de perseguido.
Como o sr. vê “Gomorra” hoje?
Eu odiei o livro por muito tempo. Sabia que devia muito a ele, talvez
até demais, mas às vezes eu gostaria de poder voltar atrás e nunca tê-lo
escrito.
O sr. é casado, tem filhos? Como se vê daqui a dez anos?
Não consigo imaginar meu futuro. Gostaria de ter uma vida normal. Venho
tentando e espero lentamente conseguir.
O que os seus pais pensam de seu trabalho?
É difícil saber o que opinam. Obviamente se orgulham de mim, mas meu
trabalho transtornou a vida deles tanto quanto a minha. É meu maior remorso.
O sr. se sente melancólico, claustrofóbico? O que lhe faz falta?
Eu me sinto assim o tempo todo. Sinto falta do meu passado, da liberdade
que perdi. Às vezes queria voltar ao verão de 2006, ano em que saiu “Gomorra”.
Lancei o livro Itália afora, com uma mochila nas costas, passando noites em
trens. As pessoas me esperavam para falar do meu livro, do estilo, do texto,
queriam saber como eu tinha reunido tantas informações. Foi a melhor época da
minha vida. Era um sonho que estava se tornando realidade: depois de tanto
trabalho, o mundo cultural italiano se dava conta desse rapaz de 26 anos que
tinha tanta vontade de escrever, de dividir ideias e experiências. Se eu
pudesse, pararia o tempo ali.
como visto na Folha de São Paulo
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