A Garota Morta em Vida

POSTADO POR: admin qua, 12 de fevereiro de 2014

Eu estava molhada e tremia de frio ao tempo em que andava pela
alameda alagada, mas me sentia bem porque sabia que em meu bolso havia a junk,
a fórmula mágica pra resolver todos os meus problemas e frustrações. Essa
sensação pela droga eu entendia muito bem, o que eu não entendia, ou pelo menos
me esquecia, era de que ela era a fonte de tudo de ruim que me cercava. Os
viciados estão sempre no mesmo círculo doentio, porque pra ficar feliz, você
precisa conseguir uma coisa que vai te dopar e te fazer pensar que está tudo
bem, até que essa coisa acaba e o seu mundo rui mais uma vez. A droga é o
veneno e o soro. Entende?

Cheguei até uma casa
abandonada e vi que os degraus da fachada decadente impediam que a água
entrasse e por isso, estava seca em seu interior, tão seca quanto as minhas
veias e a minha alma de zumbi paranoide. Procurei um canto sombrio mais ao
fundo em que pudesse me camuflar no breu e conseguisse cuidar da porta. Sentei
e em minutos estava com a minha seringa improvisada montada. O mundo da junk é
destrutivo por isso, você economiza até na seringa pra poder tomar mais um
pico, uma agulha, um conta-gotas, um isqueiro e algo pra derreter a parada são
as coisas que você precisa. Nossa… Que situação desesperadora tomava conta da
minha vida. Eu tinha de achar alguma coisa pra derreter a cocaína. Procurava na
escuridão por um pedaço de vidro ou de lata pra fazer de colher.
Eu nem parava pra pensar
em todo o tipo de bicho asqueroso que havia ali, ignorava a chance de me
infectar com doenças fartas e brutais. Mas também, não sei se encontraria pelo
meio daqueles escombros deprimentes, uma chaga maior do que aquela que eu
injetava em mim. “Achei!”,
disse contente. Era uma lata de refrigerante, na verdade, um pedaço dela,
provavelmente algum outro viciado usou uma parte ou até mesmo aquele mesmo
pedaço pra esquentar sua própria porção de junk. Só que isso não me importava.
Eu precisava dela e quem precisa de cocaína tem pressa. Quando injetei, senti
aquela sensação fervente em minhas veias e no mesmo instante, eu me achava
pronta pra dar alta da minha depressão. E como era bom sentir aquilo dentro de
mim.
Eu não tinha noção do
tempo em que estava ali, mas já encontrava dificuldade pra achar um espaço
livre em minha pele que pudesse meter a agulha. Só o que sabia era que me
sentia confortavelmente entorpecida e feliz, se é que posso usar esse termo pra
simbolizar a minha euforia infernal de viciada. De repente, não mais que de
repente, vi o meu contato usando o mesmo degrau que usei pra escapar da água,
plantado na entrada como se fosse a própria morte e seus abutres caçando o meu
corpo e a minha alma. “Merda!”,
pensei. Fiquei quieta e mesmo com toda a vontade do mundo de me picar mais uma
vez, hesitei, eu sabia que a chama do meu avio chamaria a atenção dele e me
delataria.
O relógio parecia parado
por causa da minha necessidade, então quando vi que ele não estava mais ali,
pensei que estava segura, acendi o avio pra derreter mais uma dose. Perdida na
minha paranoia, senti que fui puxada com força por uma mão agressiva e tombei
no meio da imundice que cobria o piso. Era ele, o enfermeiro, o meu contato. “Toma”, me disse. Eu não sabia
o que responder, o olhava com a droga em sua mão. Eu não disse nada, então ele
foi claro: “Quero a minha
grana”
. Eu não tinha grana e nenhum objeto que pudesse interessar pra ele.
Se ao menos eu fosse homem eu poderia oferecer o meu tênis, mas eu não era um
homem. “E agora?”,
pensei.  Mais uma vez,
revirei meus bolsos, mas só encontrei a junk. Eu estava em maus lençóis e tinha
de pensar em algo rápido se quisesse me safar. “Anda, passa a grana”,
ele me disse, depois de um intervalo bem curto, completou: “Tenho que dar plantão no
hospital”.
Nesse momento eu tremi,
pensei em tentar fugir, mas sabia que isso ia dar merda, então decidi dizer a
verdade: “Cara, eu achei que
não viesse mais, por causa da chuva, então adiantei o meu lado”
, falei. Os
olhos dele se encheram de cólera e eu vi em seu olhar sinistro as próprias
chamas do inferno. Ele me segurou pela garganta com toda a sua força, naquele
instante levei a minha mão em seu braço e ele gritou. Eu sabia que havia
apertado em suas feridas de viciado. Por causa da dor, ele me largou, mas mesmo
assim conseguiu acertar o meu rosto com um tabefe daqueles. Eu caí e antes que
pudesse ficar de pé, estava coagida pela sua faca reluzente. Um tremor tomou
conta de meu corpo, eu sentia todo o medo do mundo e sabia que teria de dar um
jeito de pagar. Eu o chamei, e se você chama uma entrega, tem que pagar. Não
tem saída! Foi quando tomei a iniciativa: “Posso
chupar, se quiser”
, falei. Eu sabia que muitas garotas faziam isso pra
ganhar a sua dose diária de junk. E pra falar a verdade, por mais que isso soe
de um jeito horrível pra você, essa era a minha única chance, naquele momento.
Tinha consciência de que ele não iria embora sem nada, um sujeito como ele só
se interessa por grana, droga, sexo e sangue.

Ainda com a faca na mão
ele foi me conduzindo sob a ameaça da sua lâmina pontiaguda até a parede, e me
beijou. Eu sentia o gosto de remédio e ópio em sua boca molenga e nojenta,
talvez tão nojenta como a minha, só que era diferente, porque por mais que eu me
sentisse imunda, a imundice dele ainda assim me era algo alheio, me parecia
cheia de um mal maior que o meu. Não sei se pode entender, mas essa é a melhor
maneira que eu encontrei pra falar sobre isso. É claro que eu queria reagir,
afinal, chupá-lo não significava beijá-lo, mas eu sabia que não era o momento
certo pra ter escrúpulo, mesmo porque, compreendia que depois que o pesadelo de
ceder a ele terminasse, teria a chance de sumir de seu alcance, ao menos por um
tempo, um dia ou dois, no máximo. Ele apertou meu peito com força, eu senti uma
dor concentrada e precisa que me fez perder o tempo do beijo. Era asqueroso
demais aquilo, mas eu fechei os olhos e procurei não fazer nenhum movimento
brusco demais que pudesse irritá-lo ainda mais. Colaborei e quando ele segurou
em minha nuca e forçou-me a ficar de joelhos eu não resisti e abocanhei aquele
pau mole que cheirava ruim. Um pedaço de nervo sem qualquer rigidez ou sinal de
ereção. Mas isso não importava pra ele. Era o pagamento! Foram os quinze
minutos mais longos de minha vida. E quando ele me soltou, agradeci a Deus. Ele
me passou a junk e disse: “Você
pode se dar bem com isso, garota”
, e foi embora.


Guardo tal dia comigo. É
como se algo houvesse morrido dentro de mim. Por que embora as minhas veias estivem
quentes de junk, eu me sentia fria em meu espírito. Depois de entregar tudo que
eu ainda tinha a ele, não havia mais nada ao meu alcance que, não fosse mais
uma dose. Foi a primeira vez que fiz isso. O meu corpo era uma moeda de troca,
uma moeda que invariavelmente carregava comigo, eu tinha noção de que estava na
lata do lixo. Se eu havia feito o que fiz não era por outro motivo que não
fosse realmente o meu fim. 
Depois de chupá-lo, me
sentia mil vezes pior, como o fantasma de um zumbi paranoide, uma alma penada
que fervia e flamejava pelos confins da junk e sua dor, interessada em mais um
pico e só!