A Especuladora da Razão

POSTADO POR: admin dom, 22 de março de 2015

Aquele não estava sendo um bom dia para Letícia. Chegou atrasada no
trabalho, perdeu o maço de cigarros, esqueceu o cartão do Bilhete Único em
casa, discutiu com a melhor amiga nas redes sociais por questões referentes à
legalização do aborto, sua tatuagem mais recente coçava inexplicavelmente e,
para completar, estava sem sexo mais tempo do que deveria, ou gostaria. Ela
poderia jurar que todo esse encargo era o culpado pelo seu andar descompasso,
mas também pensou que poderia ser resultado das calçadas irregulares da cidade.
O fato é que, a cada passo imponente contra o concreto, ela maltratava aquelas
botas gastas que calçavam seu pequeno corpo esquálido, onde cinturava uma
bermuda preta de tecido leve, logo abaixo de uma blusa branca básica com um
decote que valorizava o seu busto afoito. Composto por dois peitos naturais que
eram o orgulho da sua portadora.
Dobrou a esquina com tanta força que esbarrou violentamente em um
senhor que esperava pacientemente pela abertura do sinal de pedestres. O coitado perdeu
o equilíbrio e cambaleou pra frente feito um bêbado, quase sendo atropelado por
um carro conduzido por uma motorista que também falava ao celular enquanto
fazia a curva. 
Mesmo sabendo que era a responsável mais provável pelo
incidente, quase um acidente, colocou o fato na conta do péssimo dia que se
seguia e continuou pelo seu trajeto praguejando.
– Foda-se. O velho mereceu. Quem mandou ficar parado bem na virada da
esquina feito um poste?!
– falou para ninguém em especial.
Descendo a rua, logo mirou um rapaz com cara de sonso que subia na
direção oposta, em passos arrastados e sem a menor pressa. Atitude que não
condizia nem um pouco com o ritmo frenético imposto pela grande metrópole que
habitavam, e sem qualquer motivo especial, isso irritou Letícia assim que o
cara entrou em seu campo de visão. A coceira da tatuagem incomodou com mais
força, e em alguns segundos ela já podia concluir que aquele canalha era o
nêmeses do seu dia. Seu semblante descansado, o andar descompromissado e até
mesmo as roupas casuais que usava, denunciava que ele estava tendo um excelente
dia. O que o tornava totalmente elegível para alvo de toda a frustração de
Letícia.
Ela queria desviar os olhos do rapaz. Poderia jurar que queria. Mas
dentro de si, sentia que, em algum momento, aquele babaca justificaria toda a
sua ira. E então ela teria motivos melhores, ou algum motivo de verdade, para
odiar aquela figura sem qualquer sensação de culpa.
Não precisou esperar muito, e logo o ‘condenado’ cometeu das suas
falhas. Ele quase quebrou o pescoço quando se entortou todo para olhar a bunda
respeitável de uma loira de farmácia enfiada em uma calça de lycra. Diminuiu
ainda mais a velocidade do andar ao cruzar com uma morena de óculos trajando
um terninho feminino cinza, só para poder sentir o perfume da mulher. E Letícia
teve o estômago revirado quando viu que o puto não poupou olhares maliciosos
nem mesmo para uma adolescente de uniforme escolar que, embora fosse
nitidamente mais nova que Letícia, exibia uns peitos bem maiores que o seu.
Ela deixou estar, e esperou a sua hora chegar. A poucos metros de
também cruzar com o único motivo de toda a sua cólera, ou assim o estranhou
tornara-se desde que ela o avistara, Letícia revisou mentalmente toda a gama de
ofensas e xingamentos que conhecia. Estava decidida a fazer justiça e humilhar
o pequeno verme em via pública, dando-lhe uma lição do qual ele jamais
esqueceria. Ele queria dar uma boa olhada machista em sua bunda? Pois bem. Que
tentasse. Ela lhe daria algo que o atormentaria pelas suas próximas cem punhetas
por vir em sua miserável vida.
E ele veio. E ela foi. Armada até os dentes de palavras carregadas e
doida para despejar o seu arsenal, Letícia virou-se em um salto no intuito
de pegar o meliante em delito flagrante. Mas não acertou em nada que mirou.
O cara não tentou olhar para a sua bunda. Não andou mais devagar só
para sentir seu perfume. Nem mesmo tentou espiar o seu orgulhoso busto sob o
decote. Na verdade, ela até teve a ligeira impressão de que ele deu uma leve afastada para o lado, deixando o caminho mais folgado durante a sua passagem.
Absolutamente nada. Nada além das costas do rapaz se afastando gradualmente,
enquanto ela assistia suas convicções derreterem na calçada.
Sem acreditar no que lhe acontecia, mas decidida a não dar-se por
vencida, ela apontou para o rapaz,  inflou os pulmões e bradou a voz, sem pensar
direito do que sairia em seguida.
– Pois fique você sabendo que eu não preciso usar calça de piriguete
para valorizar o meu corpo. Não uso perfume pra agradar homem nenhum. E meu
corpo ainda dá de dez a zero em muita ninfetinha sem sal que tem por aí! Ouviu
bem? Seu merda!
O sinal abriu e o senhor conseguiu atravessar em segurança. Já a
motorista que falava no celular, provocou um terrível acidente envolvendo mais
dois carros no cruzamento seguinte. Com toda essa confusão, ninguém prestou
muita atenção na garota tatuada histérica que gritava alguma coisa no meio-fio.
Letícia sentou no chão e começou a chorar de raiva. E todo mundo que
passava pela rua, não entendia bem por qual vítima ela derramava as suas lágrimas.

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