A Agonia que balança o Berço

POSTADO POR: admin qua, 15 de janeiro de 2014

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O
casarão é mórbido e enorme. Fica perto de minha casa. Sempre que tenho de
passar em frente, atravesso a rua. É um lugar medonho de dia e de noite.
Antigamente, sede de uma fazenda, que com o tempo, fora engolida pela cidade.
Um lugar pesado e cheio de agonia.
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Veja meu amor, Francisco de Goya é o maior pintor que conheço — comentava
George, empolgado, ao tempo em que contemplava “Saturno Devorando Seus Filhos”.
Ela
não disse nada, mas sorriu, olhando-o com seus olhos azuis. Helena esticou seu
braço, oferecendo sua mão ao marido, que atendeu a sua iniciativa e apanhou-a,
ao tempo em que seguiram para a varanda, onde George, gentil, a acomodou na
cadeira de balanço. George trabalhava como restaurador de obras de arte, e
achava que a mudança para a fazenda, herança recebida de seu pai, era oportuna,
tendo em vista que, pensava em aumentar a família e tinha a chance de viver
bem, sem problemas financeiros cuidando do gado e aproveitando um dos cômodos
da majestosa casa como espaço para se dedicar à arte da restauração. Helena,
moça prendada sentia-se honrada em seu casamento, que até o momento era
estável, tanto financeiramente quanto amorosamente. Casou-se virgem e um de seus
medos era não contentar seu marido, pois desejava um companheiro feliz,
apaixonado e encantado nela por todo o sempre. O seu romantismo, a fazia amá-lo
sem discutir os desejos de seu esposo, tanto na cama quanto fora dela. Muitas
vezes, depois do sexo, Helena pensava em sua mãe, ou melhor, em como a mesma
agiria se soubesse o que sua filha era capaz de fazer. “Certamente que se
horrorizaria”, pensava, e diria que “Algumas coisas não cabem para uma mulher
de respeito, esse tipo de fantasia, os homens devem procurar fora de casa, com
as meretrizes”
. Mas Helena não pensava assim, embora discreta, decidiu que
seria uma dama para a sociedade e uma vadia na cama de seu homem. George
chegava cedo em casa e desfrutava de sua companhia enquanto ouviam música e apreciavam
um bom vinho. Nesses momentos, ele falava vigorosamente sobre o valor artístico
que cobria aquela casa, construída de acordo com o romantismo espanhol. Esse
seu gosto pela arte espanhola, refletia-se também, em seu enorme apreço por
Francisco de Goya, do mesmo modo que seu pai nutria. Embora o tom culto da
conversa, no fundo, ele mantinha-se altivo e polido por que queria
impressioná-la, como retribuição, pois sabia que após o jantar teria o prazer
de uma esposa cortesã em sua cama, algo sem etiqueta e por demais
recompensador.
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O
varão Gabriel nasceu lindo, com os olhos luminosos da mãe e o rosto de formato
triangular como o de seu pai, que adornado pelos cabelos encaracolados o fazia
parecido com o avô, um traço marcante, tal qual o pai de George. Helena, feliz,
radiava alegria ao amamentar o seu mais novo amor. Dedicada, não desgrudava
dele nem por um segundo. Mesmo com os paparicos que possuía, ela preferia
dispensar a criadagem para ater-se somente ela ao pequeno menino. Em um
domingo, George chega, adentra no quarto e a toma em seus braços, dando-lhe um
profundo beijo, um tanto quente, antes de qualquer palavra. Helena segura
Gabriel junto de seu peito, tentando protegê-lo, devido ao rompante febril por
parte de seu consorte, livra-se dele, usando seu outro braço e diz:

Cuidado, George, cuidado com o Gabriel! — depois sorri, espremendo seus olhos
claros e raiados de azul, como quem espera compreensão. George devolve um
sorriso. “Por onde anda a minha vadia?”, pensa, mas não diz nada. Ele insiste,
ela esquiva-se mais uma vez, dizendo que precisa amamentar o filho e que o
jantar está próximo. Contrariado, ele cede, e toma o caminho da sala. “Ela não
me ama”
, pensa George, “por onde anda a minha vadia?”, lamentou-se, ao tempo em
que subiu seu olhar para o quadro de Saturno e completa seu raciocínio, “Ele
comia os próprios filhos”
. Helena desce as escadas e chega. No mesmo instante,
entra a criada e diz:

Com sua licença, o jantar está servido — inocente, quebra uma silenciosa troca
de olhares entre o casal.

Vá, querida, eu preciso trocar minha camisa — mente George, que toma o caminho
da escada, mantendo seu olhar no quadro, ao tempo em que pensa, “Agora, entendo
Saturno”
.
Helena
está à mesa e espera pelo esposo, quando ouve o choro. Imediatamente,
levanta-se e corre para o quarto. Ao abrir a porta, depara-se com George, que
devora os miolos de Gabriel. Parte para cima dele. O pranto de Helena impera,
para que Gabriel cale-se. George é mais forte, e nem de perto lembra aquele
homem elegante, educado e inteligente. Helena caiu no chão pelo empurrão que
recebeu. Ainda mastigando os miolos do filho, George se aproxima. Olha para
Helena, bate em seu rosto, nada diz e a possui. Ela tenta escapar. Não
consegue. Logo que ejacula, ele foge ainda seminu, saltando pela janela em
direção ao campo aberto.
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Duzentos
anos depois, ouve-se choro de criança, o pequeno Gabriel não vai embora. Os
passos são de George, que usa o corpo de Saturno enquanto persegue o menino. A
cadeira de balanço na varanda nunca cessa o seu movimento, para frente e para
trás. É Helena, agoniada.